AS RAÍZES GENÉTICAS DO PENSAMENTO E DA FALA NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL
Resumo
A linguagem tipicamente humana se distingue da linguagem animal por ser objetiva, isto é, orientada para um objeto específico que evolui ao longo do curso do desenvolvimento humano, mais especificamente à medida que o sujeito se desenvolve intelectualmente a partir das interações sociais. Vigotski (2008), ao citar Koehler, problematiza que a linguagem dos chimpanzés, “relativamente bem desenvolvida em alguns aspectos – principalmente em termos fonéticos” (p. 42), é unicamente subjetiva, por meio da qual eles manifestam gestos, vocalizações, afetos e emoções.
Argumenta o autor, que tais peculiaridades linguísticas dos chimpanzés corroboram os estudos de Wundt, “segundo o qual os gestos de apontar (o primeiro estágio do desenvolvimento da fala humana) ainda não apareceram nos animais, mas alguns gestos dos macacos constituem uma forma de transição entre os atos de agarrar e de apontar” (p. 43). Vigotski (2008) chama a atenção para essa forma de transição por constituir um marco significativo da passagem da expressão puramente afetiva, que caracteriza a linguagem animal, para a linguagem objetiva, tipicamente humana.
Seguindo na busca das raízes do pensamento e da fala a partir da perspectiva filogenética, Vigotski apresenta discussões sobre os estudos de Yerkes em relação ao intelecto dos orangotangos. Para o psicólogo bielorrusso, Yerkes foi ousado e unânime na tentativa de explicar a ausência de fala nos antropoides. Ultrapassando Koehler, constatou a presença do que ele próprio chamou de ‘ideação mais elevada’ nos orangotangos, cuja característica pode ser comparada ao intelecto de uma criança de no máximo 3 anos de idade (VIGOTSKI, 2008).
No entanto, Vigotski critica as conclusões de Yerkes devido a superficialidade científica de sua hipótese baseada na analogia entre o comportamento humano e animal. De acordo com ele, Yerkes “não nos apresenta nenhuma prova objetiva de que os orangotangos resolvam problemas recorrendo à ideação, isto é, a imagens ou estímulos residuais” (VIGOSTKI, 2008, pp. 44-45). Diferentemente dele escreve Vigostki, Koehler demonstrou experimentalmente que o sucesso das ações dos chimpanzés estava relacionado a contemplação visual e simultânea de “todos os elementos da situação” (idem, p. 45).
Os estudos seguintes de Yerkes confirmaram que os macacos são incapazes de produzir fala no sentido humano da palavra, mesmo possuindo um aparelho fonador semelhante ao humano. O pesquisador, sublinha Vigotski, atribui essa ausência à incapacidade de imitar sons. “A sua mímica depende quase que totalmente de estímulos visuais; copiam ações, mas não sons. São incapazes de fazer o que o papagaio faz com tanto êxito” (VIGOTSKI, 2008, p. 46).
Todavia, Vigotski problematiza que se os chimpanzés possuíssem as capacidades intelectuais necessárias para aprender algo semelhante à fala humana, embrionárias que fossem, e se o problema estivesse condicionado à dificuldade de imitar sons, logo eles deveriam ser capazes de se apropriar de alguns gestos convencionais, cuja função psicológica coincidisse com os sons correspondentes. Isso por que não influi o meio, mas o uso funcional dos signos no processo de produção da fala (VIGOTSKI, 2008).
A fala funcional e tipicamente humana não é passível de reprodução pelos animais, pois requer o desenvolvimento de estruturas psicológicas internas. A linguagem dos chimpanzés é estritamente emocional e instintiva, ao vocalizar ele não tem subjacente a intenção de informar o outro sobre algo, tampouco se relaciona com o pensamento. Todavia, assim como em outros animais e no próprio ser humano, “também é um meio de contato psicológico com outros de sua espécie” (idem, p. 50).
Logo é impossível admitir que os animais são desprovidos de linguagem. Eles possuem uma forma de comunicação, porém esta é de natureza puramente instintiva e emocional, como já destacado. Um ponto que merece ênfase no estudo da linguagem dos animais dotados de voz é a coincidência da produção/vocalização de sons com os gestos afetivos. Vigotski reconhece que a fala humana provavelmente teve origem no mesmo tipo de “reações vocais expressivas” (ibidem).
Vigotski ao explorar as raízes genéticas entre o pensamento e a linguagem agora pela perspectiva ontogenética, ou seja, considerando o desenvolvimento do sujeito humano, afirma que o problema é muito mais complexo e distingue duas linhas teóricas distintas. Uma, pressupõe a existência de uma etapa pré-verbal na evolução do pensamento, cuja hipótese foi validada por experimentos feitos com crianças antes de aprenderem a falar. Os resultados obtidos foram semelhantes aos dos chimpanzés, o que levou o estudioso Buehler a denominar tal fase de idade chimpanzoide, conforme cita Vigotski (2008), a qual compreenderia os meses subjacentes ao primeiro ano de vida da criança. O autor chama a atenção para uma importante descoberta a partir desses experimentos, a saber: o fato de que as reações intelectuais embrionárias não dependem da fala.
A segunda linha teórica caracterizada por Vigotski compreende a ocorrência de uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da fala. Figuram exemplos o choro e o balbucio da criança, os quais, de acordo com ele (2008, p. 52), “são claramente estágios do desenvolvimento da fala que não têm nenhuma relação com a evolução do pensamento”. Tal fato é corroborado por pesquisas contemporâneas sobre as primeiras manifestações de comportamento da criança e das suas primeiras “respostas” à voz humana, as quais revelaram que a função social da fala já é perceptível durante o primeiro ano de vida.
Entretanto, o que importa para Vigotski é que em dado momento do desenvolvimento humano, por volta dos dois anos de idade, as linhas evolutivas do pensamento e da fala, que permaneciam até então separadas geneticamente, se unem, dando início a uma nova forma de comportamento. A criança descobre, então, que cada “coisa” tem um nome. Isso é fantástico em termos de desenvolvimento humano, pois desencadeia o estabelecimento de relações intelectuais que tornam possível o pensamento.
Em outras palavras, nessa nova etapa do desenvolvimento a criança precisa das palavras e ao questionar sobre algo ou alguém vai se apropriando por meio da aprendizagem dos signos associados aos objetos ou às pessoas. De acordo com Vigotski (2008, p. 54), “ela parece ter descoberto a função simbólica das palavras”. A fala ascende para outro nível e passa a relacionar-se com o intelecto, ou seja, com o pensamento.
Apoiados no referencial histórico-cultural, podemos afirmar que a criança descobriu a função social da fala, o que é possível, por sua vez, por que já avançou de nível no desenvolvimento do pensamento e da fala. A seguir, passamos a detalhar o percurso metodológico que orientou essa escrita a fim de discutir a complexa relação entre pensamento e linguagem no processo de desenvolvimento humano.